terça-feira, janeiro 6

A bíblia por trás das câmeras - Parte 4: Fatores decisivos para a escolha dos livros

"Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se todas elas fossem relatadas uma por uma, creio eu que nem no mundo inteiro caberiam os livros que seriam escritos."
(João 21, 25)

A própria bíblia afirma que ela é insuficiente para contar todos os feitos de Jesus.

Então, como fez a Igreja Católica para conseguir sintetizar em 4 evangelhos o que supostamente teria que caber no "mundo inteiro"? É o que eu tentarei explicar.


Durante recentes pesquisas, o que eu concluí é que não se sabe ao certo como eles foram escolhidos. Não existiu uma fórmula. Hoje, existem idéias convergentes e outras nem tanto assim sobre os fatores decisivos para a escolha. Não se sabe, por exemplo, porque alguns livros foram excluídos tornando-se "apócrifos" (evangelhos belíssimos, como o evangelho de Tomé, ficaram de fora).

No início nem todas as Igrejas aceitaram um cânone neotestamentário idêntico. No século II, igrejas latinas e gregas começaram a reconhecer os 4 evangelhos atuais, mas ainda não se tratava do NT. A lista de livros considerados canônicos variava.

Por volta da metade do século II apareceu uma figura religiosa chamada Marcião. Ele propunha como textos fundamentais do cristianismo o evangelho de Lucas e algumas das cartas de Paulo. A Igreja de Roma e outras igrejas reagiram contra essa tendência restritiva e sustentavam que precisava incluir também os evangelhos de Mateus, Marcos e João e outros escritos. Mesmo se as escolhas se revelaram mais toleran

tes e amplas, o NT deixou de fora notáveis quantidades de evangelhos e de outros escritos que gozavam de boa reputação e que foram com o tempo relegados ao esquecimento.

Hoje, mesmo com o número limitado de livros no NT, existe uma pluralidade de interpretações sobre ele. A pluralidade, de certa forma, não é bem vista. Quanto mais livros, mais interpretações. E assim entendemos um dos prováveis fatores decisivos para a escolha de poucos livros dentro muitos: a limitação do cânone possibilita um quadro de interpretações tendencialmente uniformes.

Ainda no século II houve uma tentativa, por parte de Taciano discípulo de São Justino, de agrupar os evangelhos em um único livro sem divergências - o que do ponto de vista histórico é impossível, visto as várias discrepâncias dos fatos e suas cronologias nos evangelhos. Tal livro foi intitulado Diatessaron. Contudo Taciano, fiel à seita dos gnósticos e herético encratista, não conseguiu com que sua obra fosse reconhecida pela Igreja, apesar de nunca ter sido condenada por ela.

O evangelho de Marcos é possivelmente o mais antigo dos quatro, escrito por volta de 60 d.C., e o de João o mais tardio, escrito por volta de 90 d.C. Lucas e Mateus foram escritos por volta de 80 d.C. A data de criação dos textos é um fator importantíssimo para a escolha dos livros, pois vê-se que, apesar da vantagem de livros mais antigos serem mais completos, as distorções dos textos tendem a aumentar com o passar dos anos.

O evangelho de Lucas e Mateus possuem versículos que, não por acaso, são similares. Toda uma série de palavras atribuídas a Jesus se apresentam, em ambos, com uma forma literária afinada: mesmas palavras, mesmas (ou parecidas) ordens de frase, iguais (ou parecidas) estruturas sintáticas. Se deduz que ambos se basearam sobre uma fonte comum. Essa hipótese é baseada na "teoria das duas fontes". Se Mateus e Lucas utilizaram duas fontes fundamentais - uma coleção de palavras de Jesus, conhecido como "evangelho Q" e o evangelho de Marcos -, se deve concluir que estes autores basavam as suas próprias convicções sobre fontes indiretas, como faziam normalmente os historiadores do mundo antigo que não foram testemunhas dos fatos narrados. E eis aqui outro provável fator decisivo para escolha desses livros.

Os motivos pelos quais foram escolhidos apenas aqueles 4 evangelhos não são claros. Se pode dizer que foram excluídos aqueles que continham uma imagem muito judaica de Jesus ou que pareciam dar uma visão gnóstica ou espiritualística, como o Evangelho de Tomás. A luta contra o judaísmo e o gnosticismo é provavelmente o motivo que induziu a excluir os evangelhos que pareciam mais próximos a esta orientação.

Ainda hoje os teólogos debatem duas hipóteses opostas sobre o significado e conteúdo dessa coleção. A primeira sublinha a necessária uniformidade entre os 27 textos do Novo Testamento; a outra evidencia, ao contrário, a diversidade. Assim, os que sustentam essa segunda linha afirmam que o Novo Testamento deve atenuar as diferenças, visto que Deus, autor ou inspirador dos 27 textos, não pode se contradizer. Objeto de discussão é também a hipótese que o cânon nasceu para reagir contra Marcião. Existem de fato quem acha que os primeiros a organizarem uma lista de textos cristãos dando suporte à Bíblia hebraica foram Valentino e seus seguidores de tendência agnóstica.

continua na parte 5: Os evangelhos apócrifos...

Bibliografia:
Inchiesta Sù Gesù - Mauro Pesce e Conrado Augias
Jesus, esse grande desconhecido - Juan Arias

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